segunda-feira, 31 de agosto de 2009

herança genética II

Esta aí de esquerda é minha avó Maria, em 1903, com a mesma idade que eu tinha, à direita, em 1963.
Engraçado ter duas imagens que congelaram um mesmo momento, na vida de duas meninas de mundos tão diferentes. Eu tinha apenas 8 anos quando a vó Maria morreu, não posso dizer que a conheci realmente. O que a esperava em seu futuro com certeza é completamente diferente do que me esperava no meu...

Vendo a novela do Caminho das Índias, onde mostram como os indianos respeitam os mais velhos, a gente se põe a pensar como é difícil para eles hoje a velocidade de mudanças do mundo.
Provavelmente as maiores mudanças que minha avó conheceu foram os aviões, o rádio e a televisão, mas como a segunda geração, minha mãe, estaria vivendo hoje, como estaria se sentindo hoje?
Tenho o maior orgulho dos meus tios Carola e Wilson, da geração de minha mãe, porque estes corajosos setentões enfrentaram o dragão da tecnologia, e hoje usam regularmente a internet no seu dia a dia.... na casa da tia Carola, se sai um bolo novo, não era receita da vovó, foi um download de algum site de culinária. Nas tardes da tia Carola, não tem crochezinho nem revista de fofoca... ela joga paciencias complicadíssimas no computador, e faz buscas no google de lugares que gostou ou gostaria de conhecer. As fotos de viagens passadas, o tio Wilson passa pelo scanner ( que eu não sei usar!) e depois remete para a família e os amigos. Estamos aguardando ansiosos o momento em que ele vai se apaixonar por uma câmera digital.

Existem os idosos que se recusam a mudar com o mundo, e hoje estão tendo que conviver com o analfabetismo digital, alguns por falta de estímulo, outros por desinteresse mesmo, e mesmo os aspectos sociais deste mundo novo lhes são incômodos ou indiferentes e se sentam rabugentos, reclamando que o mundo deveria vir a eles e funcionar do jeito que eles preferem, ficando mais isolados dos filhos e netos distantes.

Resta saber que tipo de velhinha eu vou ser... estou em cima do muro, do mesmo jeito que tem dia que eu digo "Pára o mundo que eu quero descer!", tem outros dias em que eu quero ver tudo que é novo... ao mesmo tempo que escrevo o blog familiar, não confio no meio virtual para preservar arquivos, memórias, escritos. Ainda me sinto mais segura lendo um livro impresso do que um e-book. Mas AMO o msn messenger para falar com meus filhos, ao contrário do regular serviço dos Correios... A-DO-RO fazer downloads.... livros que teria que viajar para comprar, e que talvez só encontrasse em sebos ou museus estão à minha disposição em segundos.
Mas a tecnologia não faz bem à arte.... as imagens pasteurizadas e as músicas disseminadas sem royalties não têm o mesmo impacto em nossas vidas que admirar um Van Gogh ou ouvir Eudóxia de Barros ao vivo.

O mundo da tecnologia tem um efeito estranho, porque nos aproxima de pessoas que nunca teríamos conhecido na vida, mas ao mesmo tempo nos distancia, nos mantem numa tela fria.
É mais ou menos como o "voce pode ver, mas não pode pegar" de uma vitrine, uma amizade que é real na medida em que se divide pensamentos , alegrias e tristezas, mas é ilusão na medida em que não se olha nos olhos, não se abraça, não se caminha junto numa tarde chuvosa. Fica faltando o calor humano.

A benção da internet permite encontrar velhos amigos e retomar o contato diário com eles, mas esta facilidade de contato virtual tambem nos desestimula a viajar e buscar abraça-los de verdade, como se apenas saber notícias das pessoas fosse suficiente, deixasse de ser necessário partilhar a vida com eles.


Ainda não falei das diferenças de trajes entre as duas... os cachinhos de vovó, feitos a ferro quente todos os dias, as botinhas apertadas que deviam dificultar as brincadeiras.... a boneca de louça... exatamente iguais aos que a avó dela usou.
Meus sapatos já tinham sola de borracha seguras, a meia de poliester de tear industrial, minha boneca era de plástico, e eu não usava ceroulas com certeza. Mas as franjinhas são identicas. Os narizes tambem.
Olhando para trás, em termos de história, é difícil acreditar que apenas 60 anos nos separam.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

memória

Para falar de novo do tempo.... já comentado aqui antes (o rio e o tempo).

Charles Chaplin uma vez disse:
"A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente.
Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo.
Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria.
Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara pra faculdade.
Você vai pro colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando...
E termina tudo com um ótimo orgasmo!!!
Não seria perfeito?"

A linha do tempo só existe no Universo da matéria, porque a matéria envelhece, a matéria deteriora e precisa ser reciclada. No mundo das idéias, no mundo do espírito, e no mundo da memória, o tempo não existe, tudo pode acontecer simultaneamente, ou fora de ordem.
Existem vários tipos de memória em nossas vidas... a memória de registro, que pode ficar confusa com a idade ou amnésia, a memória emocional, que traz o frescor daquelas flores do primeiro namorado para o seu tato agora, a memória imediata, que fica repetindo inumeras vezes um numero de telefone e no meu caso quando vai discar, está errado....

A vida passa, crescemos, ficamos mais velhos e mais gordos, mas isso só se constata ao olhar no espelho, porque aqui dentro ainda somos os mesmo jovens audazes e onipotentes dos 20 anos, achando aquela imagem do espelho uma insanidade, e de mau gosto.

Onde vão parar os fatos da vida que perdemos na memória, que não foram tão marcantes para ter registro indelével, mas ocorreram, tiveram coadjuvantes e tiveram consequencias? Imagino que as pessoas que escrevem diarios podem, ao ler cadernos antigos, redescobrir coisa das quais nunca teriam se lembrado sem este recurso. As pessoas que têm o hábito de tirar muitas fotografias tambem.

Nosso cérebro não comportaria guardar TUDO que ocorre em nossas vidas, existe um software embutido que analisa a prioridade dos fatos e faz uma triagem... o primeiro sorriso do Rafael na maternidade ficou, mas onde foram parar os outros tantos milhares de sorrisos que ele me deu?

Em filmes americanos se vê com frequência o costume que as crianças têm de enterrar "capsulas de tempo", contendo objetos de valor sentimental para serem recuperados muitos anos depois.
Mas como guardar o cheiro daquelas rosas? O som daquela voz? Aquela risada de cócegas impagável dos bebês?

Como deve ser abrir um diário de 30 anos atrás e descobrir que você era outra pessoa, irreconhecível hoje? Que pequenos valores e desejos antigos não tinham fundamento, ou seriam abandonados adiante?
Pessoas que perdem a memória precisam sair em busca de si mesmas, e com frequencia se reconstroem no processo, ficando totalmente diferentes do que costumavam ser.

As pessoas deviam poder escolher suas memórias que vão ficar quando maduras, para poder selecionar com sabedoria o que merece ser lembrado.
Devia haver pequenos comprimidos de memória que pudéssemos tomar na velhice, para reviver aqueles momentos.
Não existe sensação pior do que querer, precisar recuperar uma meória, uma emoção, uma imagem, e não poder... fica um vazio preenchido por angústia, por uma sensação de incapacidade, como se fôssemos um computador muito velho e ultrapassado tentando desesperadamente abrir um arquivo incompatível.

O pior é que as pessoas que têm saco para fazer registros muito organizados como diários e albuns de fotos são tão chatas que pouca coisa do que elas podem lembrar é interessante...

Quando um de nós parte desta dimensão, o que ficará de suas memórias, senão os fatos vistos pelos olhos dos outros?

Minha querida amiga Beth nos deixou ontem... fica na memória um sorriso doce, sempre aberto, a simplicidade que só a honestidade e a integridade possuem, a voz doce de quem sempre tinha paciência e sempre via tudo em profundidade, a dedicação concenciosa de quem respeita o outro, o ideal do convívio com a natureza, alguém que merecia muito ter podido inverter a ordem natural da vida e viver a vida ao contrário, como Chaplin sugeriu. Não sei que memórias dela própria ela teria querido que preservássemos, então ficamos com as nossas.
Porque ela fazia diferença, onde estivesse.
E já está fazendo falta.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

giramundo






Os Giramundos agora teem página propria e podem ser adquiridos em
www.estrelagira.blogspot.com


A primeira estrela que vi foi em São Luiz do Paraitinga, SP, um dos últimos baluartes da cultura e folclore brasileiros. Nós (eu e a Ana Maria) a desmontamos para ver como era feita, e depois pesquisamos materiais e técnicas de montagem, e durante este período aconteceu o inesperado: pessoas oriundas de todo o Brasil que passavam por nossa loja reconheciam as estrelas como lembranças de avós e bisavós, mas os nomes que lhes davam eram diferentes conforme a região.
Uma peça de artesanato produzida em todo o Brasil durante pelo menos 250 anos, tecendo estórias e histórias de famílias. O mais legal é que elas viam as estrelas com um brilho de felicidade, de saudade nos olhos... começamos a recuperar a tecnica, a reproduzir a montagem de varios locais do Brasil, e pretendemos divulgar isso para resgatar este artesanato antigo da época do Imperio. Descobrimos tambem que as moças do Imperio, com a mesma tecnica, faziam caixinhas e porta joias.
Eis os nomes que até agora coletamos, a algumas das estórias relacionadas às estrelas:
Flor de Mandacaru: é assim chamada no Nordeste, onde eles fazem estrelas menores dentro das outras, reproduzindo a geometria da flor do cacto do agreste. Nos contaram que enfeitam varandas das casas e barracas em festas regionais.
Giramundo: é o nome mais conhecido, no Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia, têem um pingente que pode ter várias formas e ficam girando ao sabor do vento, de acordo com uma de nossas fontes mostrando às pessoas as várias faces que a vida tem, e que nenhuma delas é permanente. A lenda diz que ela "chama " a sorte ao girar, porisso é pendurada nos batentes de portas, janelas e em varandas.
Carambola: nome dado no interior do Paraná, devido à semelhança da flor com a geometria de uma fatia transversal da fruta.
Estrela, Segredo, Cofrinho: nomes conhecidos no estado de São Paulo, devido ao costume da época imperial em que as mães presenteavam a filha que se casava com uma estrela e punham dentro dela algum dinheiro para emergências. Nos relataram que ao redor de 1940-1950 se ensinava nas escolas as meninas a fazer estrelas nas aulas de artes em escolas do interior paulista.
Estrela da Felicidade: nome dado no sul do Brasil e nos pampas em geral, onde a influência da cultura ibérica embutiu um costume místico na feitura das estrelas, que se chama de “costurar” orações de proteção ou na intenção de cura, tornando a estrela um amuleto pessoal, lá as estrelas eram feitas por curandeiras.
Espinheiro, agulheiro: nomes dado em Goiás e Mato Grosso, onde as fazem com losangos bem pontudos e estreitos.
Pindaíva ou pindaíba: nome da região do pantanal, Goiás, Mato Grosso. É uma fruta vermelha, cheia de pontas, que dá em arvores de mata densa no Brasil central... quando os caboclos não teem mais nada para comer entram na mata para catar pindaívas ( daí surgiu a expressão "está na pindaíba" = não tem nenhum outro recurso)
Uma variante da estória é de que na época do Império as mães presenteavam as filhas com estrelas veio das fazendas da região serrana do Rio de Janeiro e é particularmente singela: durante toda a vida da moça a mãe guardava pedacinhos do tecido usado para confeccionar as roupas dela, lembranças do dia de batismo, aniversários e outras datas, e quando a moça se casava a mãe lhe entregava partes da sua história na forma de uma estrela, que ela iria levar para a casa onde ia começar sua nova história como futura mãe.
As estrelas são feitas com papel paraná, 60 losangos revestidos de tecido individualmente e depois costurados uns aos outros, formando 12 flores de formato pentagonal, num trabalho total de cerca de 6 horas por estrela para quem já tem bastante prática.
Pitágoras, em sua geometria sagrada, já considerava o dodecaedro uma forma mística, relacionada à cura e aos poderes misteriosos.
Quem gosta de fazer arte com as mãos sabe que existe um prazer em dar forma à beleza... mas no caso das estrelas é uma coisa intensa, porque a cada corte diferente no tecido elas ganham nova vida, nova forma. É como solidificar sonhos, por ordem na criatividade, organizar a beleza.


Giramundo, e o mundo gira... e a cada volta, se vê outra cor, outra flor, outra vida.

domingo, 23 de agosto de 2009

confiança


Esse aí é o Tigrão (cujos novos pais batizaram de Chico).
Ele e a mãe, a Cicinha, "apareceram" dormindo encolhidos no meu quintal, num fim de semana.Estavam famintos, com frio, com medo de gente, e ainda assim, sem me conhecer me "adotaram", sorriram pra mim, CONFIARAM em mim, a Cicinha virou a barriga para cima para receber agrados, numa mostra de total vulnerabilidade.

Confiança é um elo esquisito.
Ela é total doação, vem do fundo da alma sem freios, sem medidas, mas é sujeita a recepção parcial e até mesmo a total decepção.
Os animais que já foram traídos por homens nunca se recuperam, ficam para sempre arredios, alertas, desconfortáveis.
Os homens que já foram traídos por homens às vezes se recuperam, e alguns têem até a capacidade de perdoar.Talvez esta seja uma diferença entre nós e os animais.

Exercemos a confiança todos os dias, em graus variados, muitas vezes sem perceber. Confiamos no médico que nos atende, no professor que nos ensina, nos profissionais que contratamos, nas pessoas que nos vendem alimentos... mas nenhuma confiança é tão crítica quanto a que depositamos nas pessoas que nos tocam o coração, sejam parentes, amigos ou amantes.

Tem montes de gente ferida andando por aí, traída por gente ou pelo destino injusto, faltando um pedaço, que se esconde lambendo uma ferida numa caverna escura, usando uma armadura para se proteger de outros golpes, se sentindo tão frágil e amendrotado que prefere se apegar a pequenas rotinas e pequenas certezas para poder continuar vivendo.
O nome do remédio para elas é a outra coisa que nos diferencia dos animais: Esperança. A Confiança e a Esperança são irmãs.

Quanto mais a gente viveu, mais teve contato com a Esperança, mais certeza tem de que a roda gira, o alto segue ao baixo num círculo infinito... mas ainda assim, às vezes o golpe é tão grande que só a Esperança nao cura a ferida...

Então entra em cena o outro remédio que nos diferencia dos animais: a Fé.
Não precisa ser religiosidade, beatitude, subserviência a um culto. Apenas Fé.
Fé de saber dentro do coração que houve uma força maior que criou a natureza, cheia de exemplos de vida, morte e renascimento. Se o homem é parte da natureza, ele tem Fé, ele vive, morre e renasce todos os dias porque ele é parte integrante do plano mestre.

Certas pessoas, como Orfeu, tiveram a coragem de mergulhar no inferno para resgatar a outra metade da sua alma que se perdeu, tiveram a coragem de enfrentar a CAUSA de seu desespero.
Outros, como Romeu, preferiram entregar a sua metade que ficou ao mesmo destino que levou a outra metade, o EFEITO da tragédia foi tanto que foi mais forte.

Existe sempre uma escolha, sobreviver ou desistir.
Sobreviver significa recuperar a Confiança, exercer a Esperança.
Fazer esta sobrevivencia valer a pena e ser produtiva significa recuperar a Fé.


sexta-feira, 21 de agosto de 2009

corrupção e esperança

Este artigo de Frei Betto estava ente meus guardados


Ajardinar a esperança

"A esperança é um pássaro em vôo permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe nenhuma barreira. É assim em tudo aquilo que se nutre de esperança: o amor, a educação de um filho, o sonho de um mundo melhor
Você pensa que eu também não tenho vontade de mandar tudo às favas? Pensa que não me invade esse sentimento de frustração, essa amargura oca, essa acidez na boca da alma? Sim, tem hora que me canso de bancar o Sísifo, de ficar carregando ladeira acima essa pesada pedra de uma esperança esburacada. Tem hora que me sinto Prometeu acorrentado, mas sem revolta, agradecido por ter as mãos atadas. E a única coisa que me passa pela cabeça é embriagar-me de alienação e ficar na varanda do apartamento, contemplando silenciosamente a cidade lá embaixo, miríades cristais reluzindo impessoais, anônimos, indiferentes ao meu estupor.

É muito frustrante semear esperanças. São grãos miúdos, delicados, quase invisíveis, ora plantados no caminho acidentado, ora num coração angustiado, sempre no terreno árido da pobreza insolente. E depois vem o árduo trabalho de regar todos os dias, ver emergir o primeiro broto, um fiasco de verde aflorando sobre a terra negra, e a gente é tomado por esse sentimento feminino do querer cuidar e começa então a acreditar que a primavera existe.
A esperança é um pássaro em vôo permanente. Segue adiante e acima de nossos olhos, flutua sob o céu azul, não se lhe opõe nenhuma barreira. É assim em tudo aquilo que se nutre de esperança: o amor, a educação de um filho, o sonho de um mundo melhor.

A política sempre foi alvo predileto da esperança, desde os tempos bíblicos. No Antigo Testamento, aparece no passado (Jardim do Éden), no futuro (a Terra Prometida) e no presente (a confiança nas promessas de Javé). Os profetas sabiam ajardinar a esperança.
A esperança política é uma fênix. Sempre a renascer das cinzas. Foi assim no milenarismo monárquico medieval, na Revolução Francesa, na União Soviética. Foi assim também com Tancredo Neves, visto como um novo Moisés que também não pisou a Terra Prometida. Agora as denúncias de corrupção fazem o pássaro cessar o vôo em pleno ar. Ele não pousa. Fica lá em cima empalhado por nossas miragens utópicas, enquanto uma dor dilacera-nos por dentro.

Então minha memória resgata o horror. Primeiro, os gritos. A pele toda se arrepia. Se eu fosse surdo, veria apenas o rosto esgarçado numa máscara de terror. Mas meus ouvidos se entopem dos berros estridentes. O corpo eriça-se. Não sou eu, nem a minha razão que o comanda. É o instinto animal, primevo, que vem lá de baixo da escala zoológica e agora se manifesta nessa reação de bicho acuado por uma ameaça próxima. Não há saída. Da sala de tortura, saio morto ou quebrado. A outra alternativa é mais assombrosa. A de sair irremediavelmente sonegado em minha identidade, mercadejando a informação em troca de uma sobrevivência indigna.
Ele abaixa o tom de voz e tenta vencer-me pelo aliciamento. Diz pausadamente que não tenho escapatória. E devo contar com a sua compreensão. Mas a sua paciência tem limites... tem limites... até que meu silêncio detona a explosão. Nele a fera racional irrompe em gestos calculados e começa a tortura.

Mas essa não é a única modalidade de tortura. Há outras, tão ou mais terríveis, porque escarafuncham a alma, ferem fundo o espírito, arrancam o que o coração guarda, deixando-o miseravelmente vazio. É a dor de ver um projeto adulterado pela ambição desmedida, a sede de poder, o pragmatismo inescrupuloso, essa esperteza tão pusilânime que acaba por engolir o esperto, como a cobra morde o próprio rabo.

Um sonho se tece de mil fios delicados, até que um dia a imagem se transporta da mente à realidade. Talvez não se saiba aonde exatamente se pretende chegar. É como no amor, os sentimentos criam vínculos sem que se saiba ou se possa adivinhar o porvir. Sabe-se contudo por onde não ir. Como no poema de José Régio, "não sei por onde vou, / não sei para onde vou, / sei que não vou por aí!" Não vou pelas vias que conduzem os passos do inimigo. Não trilharei os caminhos sombrios, tortuosos, da corrupção, da sonegação, da falcatrua e da negociata.

Um corrupto é o resultado de pequenas infidelidades. Ele não se faz senão através de detalhes que se lhe acumulam na alma: levar vantagem num negócio, apropriar-se de um bem aparentemente insignificante, trair a confiança alheia. Não é o dinheiro que destrói a sua moral. É a ganância, a arrogância, a convicção de que é mais esperto que os demais.
Não há ética sem humildade, saber ser do tamanho que se é, nem maior nem menor do que ninguém. E sustentar a esperança na certeza de que só haverá colheita se desde agora se cuidar, delicada e anonimamente, da semeadura.


domingo, 16 de agosto de 2009

novos tempos



Anos atrás a prova de conclusão de um curso de desenho que eu fiz consistia em fazer uma releitura de uma obra de arte bastante conhecida, de forma que o publico reconhecesse imediatamente a obra mãe.
Este aí de cima foi o meu trabalho, porque as mulheres já não andavam mais lendo da mesma forma que na época de Renoir.

Tudo isso me leva a rever os tempos em que vivi. Me considero privilegiada de ter presenciado nesta vida as mudanças mais completas e rápidas por que a humanidade passou. Os últimos 60 anos viram a criação de um mundo completamente diferente e a história se acelerou a um ponto em que a cada 5 anos já existe um novo mundo, uma nova sociedade a ser registrada. Uma pessoa que não saiba usar um computador e a internet é a analfabeta de hoje. Profissões deixaram de existir, e outras novas aparecem como pipocas.

Quem viveu em 1850 já tinha a possibilidade de ouvir num gramophone a gravação de uma grande orquestra, ou um grande virtuose, de forma que as grandes performances deixaram de ser efêmeras. Como teria sido poder ouvir o próprio Paganini, o próprio Liszt, o próprio Mozart interpretando sua obras mestras????
Quem viveu em 1900 já podia receber comunicação de longas distâncias pelo rádio e pode conhecer a Luz elétrica.
Quem viveu em 1950 já podia usar o telefone, a fotografia, o radar, os telegramas, os aviões.

Eu nasci em 1960, já havia televisão, transmissão direta ao vivo, programas gravados em fitas, apenas 10 anos depois de 1950.
Cara, eu assiti AO VIVO ao homem pisando na Lua!
Daí em diante a cada poucos anos uma nova tecnologia surgiu e afetou a humanidade em geral, até chegar onde estamos hoje, que será menos "acelerado" do que onde estaremos em 2015.

Eu carrego hoje, num pendrive que tem 6 cm de tamanho, o equivalente ao acervo da Biblioteca de Alexandria, 1200 textos antigos sobre Alquimia, Filosofia, Metafísica, História, Arte, Geometria Sagrada, Hermetismo, Kabbalah, escritos dos filósofos gregos, dos grandes humanistas e obras de escritores clássicos, muitas vertentes do pensamento humano... em segundos, com o auxílio de um pequeno aparelho, sem sair do conforto da minha casa, eu tenho acesso à sabedoria e escritos de grandes mentes de todo um passado registrado da humanidade.
Isso faz de mim uma pessoa mais sábia do que eles?
Isso faz de mim uma pessoa com mais responsabilidade do que eles carregaram?
Isso faz o meu mundo melhor do que o deles?


Infelizmente o homem não passou por um upgrade juntamente com a tecnologia, um sábio ainda vai precisar ler e meditar sobre toda essa informação que acumulou, ainda vai precisar gastar longos anos de estudo para conseguir extrair de todo este material algo novo, algo importante, algo que signifique um pequeno passo adiante no pensamento e filosofia que definem o que é ser um membro da humanidade, um Homem Humanista.

Existe um defasagem de tempo entre a aceleração da história e o tempo necessário para a compreensão do conteúdo de todo conhecimento da humanidade ... serão possíveis de se concicliar estes dois?

Às vezes fico imaginando que a posição de Leonardo da Vinci como um mestre de todas as áreas de conhecimento do seu tempo hoje seria impossível, basta constatar que TUDO o que se sabia na época dele era menos do que um estudante regular do segundo grau tem que saber hoje para passar num vestibular decente.

A diferença de velocidade do avanço da tecnologia em relação ao pouco tempo de duração da vida de um homem para a compreensão do conteúdo de conhecimento da humanidade pode nos levar de volta à uma Idade da Treva, porque a informação circula sem filtros, sem bases e pre requisitos, e as pessoas já a estão usando de forma supersticiosa ou simplista... Daqui a pouco estaremos dizendo " é assim porque algum fisico quantico disse", ou " acredito nisso porque foi publicado na revista tal"... ninguem mais vai conferir as fontes, as bases do pensamento antes de assumi-lo como verídico e válido, ninguem mais tem bases para comparação e análise. Os estudantes copiam seus trabalhos escolares da internet sem ter a menor noção da validade das fontes que estão usando.

Vão surgir escritores que nunca tiveram tempo para ler todos os clássicos e todos os grandes escritores que os precederam, a vida moderna não permite às pessoas muito tempo para si mesmas, para leitura, estudo particular, o tempo é raro e precisa ser usado na formação e desempenho profissionais... no final das contas vivemos apenas para continuar vivendo, para continuar cumprindo metas e tarefas cuja única finalidade é a manutenção do sistema em si, estamos vivendo anestesiados na Matrix, apenas para sustentar a máquina.

Vão surgir especialistas, que precisam de tanto tempo para se aprofundar num único assunto que não poderão se instruir em outras áreas humanas de conhecimento,no afã de conhecer o minúsculo grão eles nunca verão uma tempestade de areia moldar uma rocha sólida.

Médicos estudam tantos anos para enxergar completamente um pequena parte do seu corpo, e mesmo que quisessem nunca teriam tempo suficiente nas suas vidas para dominar o funcionamento do corpo inteiro.

Estudiosos que passarão suas vidas catalogando TUDO no mundo humano como sendo apenas reflexo de uma única forma de visão, os psicólogos psicologizam tudo, os cientistas avaliam tudo cientificamente, criando mundos estanques de economistas, advogados, tecnicos, e assim por diante, pequenas ilhas de raciocinio e avaliação norteadas por uma única forma de ver as coisas.

Mas a Humanidade e o Humanismo sobreviveram a tantas coisas, durante tanto tempo, que em algum lugar, em alguma caverna, um eremita vai se resguardar deste mundo moderno, estudar e proteger os conhecimentos antigos, para que no final desta nova idade acelerada e superficial os homens retomem o desenvolvimento em uma velocidade que lhes permita de novo crescer, evoluir e melhorar junto e a favor da Humanidade e do Humanismo.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

ver como um gato



Ver o mundo pelos olhos de um gato...

- procure ver tudo sempre de cima... é uma posição segura, a certa distância se percebe melhor para onde as coisas estão indo

- acompanhe o movimento das coisas em volta de voce... tudo que se move é interessante, tem vida e não fica chato (booooooring)

- boceje sempre que tiver vontade, dá uma ligada no cérebro e faz ginastica nos musculos faciais.. já viu gato precisar fazer lifting de bochecha?

- mantenha-se sempre limpo, penteado, asseado... de preferencia não lamba a b.... na frente das visitas, mas faça um esforço constante para estar bonitinho

- durma bastante, sem pudor, sem vergonha de ser feliz.... é preciso guardar energia para a hora da caça, mas se o prato estiver sempre cheio a gente dorme pelo simples prazer de dormir.

- olhe fixo nos olhos dos humanos... eles ficam desconfortaveis (por isso adoram os cães, que teem olhar subserviente) e provavelmente vão fazer o que voce quiser e achar que voce sabe de coisas que eles não sabem.

- mie, mie muito quando quiser atenção do seu humano... eles são meio distraídos e às vezes pensam que a casa é deles, a programação são eles que fazem... se preciso dê uma mordidinha de aviso

- de vez em quando dê uma piscada para seu humano saber que está fazendo um bom trabalho, mas não fique muito grudado ou ele vai acabar "se achando"

- espreguice, espreguiiiiiiiiiice muito e mude de posição quando cansar de dormir de um lado só, pode marcar o pelo

- conheça cada cantinho da sua casa, mesmo os mais escondidos, nunca se sabe de onde pode surgir uma surpresa, ou uma delícia.

- descubra um cantinho da sua casa que seja só seu... onde seus sonhos e preguiças encontrem abrigo e de onde fique mais fácil ver a vida

- conheça todos os gatos da vizinhaça, e quando estiver numa fase de abundancia traga os amigos para comer em casa

- enrosque-se nas pernas do seu humano quando estiver carente, e fique entre ele e a namorada no sofá (ela tem que aprender o lugar dela!)

- na hora de dormir pegue o lado mais macio da cama, e vá empurrando seu humano para o canto dele ( eles são folgaaaaados). Se preferir, pegue logo o travesseiro.

- fale o mínimo necessário, apenas quando realmente tiver algo a dizer...

... enfim, MIAU pra voces.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Rosas


A família da rosáceas nos alimenta o corpo através das frutas e a alma com as rosas...

As rosas são originarias da Síria, onde os cruzados as conheceram. Deste encontro nasceu a reputação mística da flor, que era cultivada em jardins internos das casas, onde se tinha conversas privadas, que depois de muito tempo passaram a ser chamadas de sub rosa, a rosa passou a identificar mistérios, segredos. Nossa Senhora sempre é representada com rosas, era chamada a Rosa Mística.
As rosas sírias eram bem simples, com apenas as 5 pétalas caracteristicas que tambem têm as flores dos pessegueiros, das macieiras, etc, mas com o passar do tempo foram cultivadas e transformadas de forma a ter mais pétalas, mais cores, florescer solitárias nos galhos ao invés de florescer em cachos.

As cores das rosas, desde o século XVIII passaram a ser códigos, vermelhas para paixão, rosa para afeto, amarelas para amizade, brancas para pureza....

O aroma das rosas desde tempos antigos é usado em comidas especiais no oriente, geléias e chás, e tambem em pequenas bolinhas feitas com as petalas comprimidas, que formam colares aromáticos, outra coisa que os cruzados trouxeram na sua volta para a Europa, terços e colares feitos de pétalas de rosas, conservando seu perfume.

Na arte as rosas inspiraram com sua geometria perfeita a criação de vitrais coloridos, que depois passaram a ser chamados de rosáceas. Cerâmicas foram decoradas com rosas, papéis de parede, de carta, marchetaria, joalheria...

Tudo isso para dizer o quanto elas são importantes, o quanto de nossas vidas esteve ligado a elas, quantas lembranças temos que envolvem as rosas, em momentos alegres e tristes. TODO MUNDO tem em casa alguma coisa que tem a imagem de uma rosa, é um desafio, vá procurar.

As floriculturas de hoje desenvolveram rosas que não se abrem expontâneamente, porque as pessoas as acham mais bonitas em botão, mas é pena, porque a geometria perfeita, o veludo das pétalas e o melhor do perfume só aparece nas rosas maduras, já abertas, exatamente como as mulheres maduras têm mais conteúdo, mesmo sem as formas perfeitas da juventude....

Elas florescem o ano todo, sem trégua, para não deixar nosso ano meio vazio com sua ausencia. São mais resistentes do que parecem.

Eternas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

fruto proibido




A família botânica das rosáceas devia ter sido canonizada.... ela provê os frutos mais doces e carnudos que existem, maçãs, pessegos, peras, ameixas, e as flores mais belas da natureza, as rosas.

A maçã sempre foi conhecida como o fruto proibido do jardim do Éden, a imagem de um maçã mordida sempre foi o ícone representativo da perdição, da tentação que venceu Eva, mas tem um problema nessa onda: em nenhum lugar da Torah o fruto que Eva mordeu foi chamado de maçã, ou por qualquer nome que incriminasse esta fruta. Era o fruto da árvore do conhecimento, a Gnose, a possibilidade de Eva saber quem ela realmente era, a pílula azul de Matrix.
Machiavel costumava dizer: tradutore, traditore!.... todo tradutor é um traidor da ideia original e o mancão que incriminou as maçãs deve estar no purgatório até hoje, foi o erro de tradução mais duradouro e de maior repercussão na história.

As maçãs tambem ficaram conhecidas como a fruta das bruxas... em parte por causa da famigerada Eva, em parte por causa do pentagrama que elas conteem dentro de si se cortadas horizontalmente, o pentagrama era um simbolo de proteção na cultura bruxistica. Basta falar em maçã e voce lembra da bruxa má envenenando Branca de Neve ( aquela sonsa!).

Quem já sentiu o aroma de uma torta de maçãs ainda quente, ou de maçãs assadas sabe que o perfume é inesquecível. A cor é um deleite de riqueza e nobreza.

A macieira é símbolo do triunfo do amor desde a Idade Média, porque no inverno ela perde todas a folhas e fica parecendo uma árvore morta, e de repente no final do inverno ela fica toda coberta por flores maravilhosas de 5 petalas, rosadas e brancas, prenunciando a vinda de frutos divinos na primavera... o que nos remete às deliciosas "maçãs do amor" vendidas por ambulantes nas festas de rua...

e tem a Big Apple... New York... um desbunde total de tudo.

Não podemos nos esquecer de que a Lei da Gravidade foi "causada" pela queda de uma maçã sobre a ilustre cabeça de Sir Issac Newton...

Os macaquinhos aqui da beira do rio adoram maçãs, já picadas para facilitar, porque as mãozinhas deles são minusculas.


oportunamente continuaremos o assunto das rosáceas .

assessoria do artigo: o bicho da maçã.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

filhos da raposa

Do nada, ontem me veio à lembrança o primeiro lugar na vida que chamei de Paraíso... a RAPOSA VERMELHA.

Era uma coisa totalmente louca, nova na cidade, um sobradinho que tinha um porão num nível inferior ao da calçada (como os de Londres), pintado de vermelho escuro ( na época foi um frissom, ninguem acreditava que alguem pusesse usar estas cores numa parede externa), em que funcionava uma livraria esotérica (que era uma coisa totalmente nova), loja de discos ( ainda de vinil) e coisas da Índia, místicas, esotéricas, camisetas, posters de bandas de rock.
Ficava no centro de Campinas, perto do tambem novo Centro de Convivencia, numa rua que eu subia todos os dias no caminho entre a Cultura Inglesa e o ponto de ônibus (acho que se chamava Padre Vieira). Todo dinheirinho guardado era destinado a passear na Raposa Vermelha, e, com sorte, trazer alguma coisa para ler em casa.

Foi lá que eu conheci o aroma do incenso... as más linguas diziam que era cheiro de cannabis, mas era incenso mesmo, que ninguem ainda estava acostumado como estamos hoje. .. foi lá que comprei o I Ching de W Reich, discos novos de Rick Wakeman e Yes, a revista ROCK, meu primeiro Tarô! foi lá que eu tive contato com gente estranha igual a mim, que acreditava em "energia", pressentimento, inconsciente coletivo... gente isso foi nos anos de 75 - 78! Quinta dinastia!

... e eu nem imaginava o quão cult e transada eu era!

Onde andarão os outros filhos da Raposa Vermelha? eu sei que ela não existe mais, passei lá quando fui a Campinas e constatei que há prédios de apartamentos no local.
Deve ter havido toda uma geração, talvez até 2, de pessoas que frequentaram a Raposa e mergulharam no universo alternativo (termo que ninguem naquela época conhecia).

Filhos da Raposa Vermelha, se me lerem, manifestem-se!