Bom eu sempre gostei de Historia, e porisso amo os filmes da nova geração de aventura histórica pela pesquisa que eles fazem em termos de costumes, vestuario, arquitetura e lingua.
Resolvi começar este tópico pelo mais atual, Robin Hood, porque o filme conta muito com o conhecimento prévio do espectador sobre o assunto, e muita gente que assistiu ficou "no vácuo" e não gostou do filme. Robin Hood no cinema e TV já teve
mais leituras do que a Biblia, cerca de 75 desde 1922, inclusive uma Princesa dos ladrões feita por Keira Knightley para a TV.
Antes de mais nada a História, os personagens de sempre foram relidos com cores autenticas, esqueça as calças de malha justa verde e o chapéuzinho gay que Douglas Fairbanks e Errol Flynn usaram, e os ambientes limpos e um Ricardo Coração de Leão do bem do filme de Kevin Costner.
O grande Ricardo I, o Coração de Leão, não gostava da Inglaterra nem dos ingleses, ele mesmo nunca falava ingles porque foi educado em territorio que seu pai conquistou na França e era filho de uma grande ex rainha francesa, Alinor de Aquitaine. Naquela época, o top era ser de um país europeu "civilizado", como a Alemanha, França, Espanha, e os nobres europeus viam o território inglês como secundário e primitivo. Ricardo sumiu cedo da Inglaterra, na Terceira Cruzada de motivos ambiguos, que consumiu todo o dinheiro da Inglaterra e na volta ainda foi capturado, os ingleses tiveram que pagar um resgate de enormes proporções por ele, que conseguiu perder tambem os territorios franceses que o pai havia conquistado. Não se pode negar que ele tinha no coração os ideais da cavalaria, tanto que estabeleceu uma relação de competidor igual e cordialidade cultural com o grande Sahl al Hudin (Saladino), mas no fundo era o de sempre, matar todo mundo que via pela frente, roubar o que conseguisse e alimentar o grande ego com a fama das vitorias. O fato de que ele morreu num cerco desnecessário atingido por um serviçal menor enquanto fazia bravatas na frente do seu exercito foi historicamente bem retratado. Deu mole.....
Sir William Marshal foi O GRANDE cavaleiro da Idade Media, e foi retratado no filme fielmente, como uma pessoa que colocou o trono e o país ingles acima da figura pessoal dos seus reis e dos interesses dos seus colegas barões. Ele serviu como conselheiro, ouvidor e administrador a 4 reis ingleses, Henry II, Ricardo I, John I e Henry III, o filho de João, de quem foi tutor até a maioridade. Pouca gente sabe que o cargo de sherife/delegado em ingles se chama marshal devido ao sobrenome deste grande homem. Ele serviu na Segunda Cruzada, depois voltou para servir aos reis da Inglaterra até o dia da sua morte, quando foi admitido como Templario e enterrado na Temple Church de Londres.
O Principe João Sem Terra foi retratado como a literatura sempre o fez, egocentrico, futil, sem nenhuma habilidade intelectual, administrativa ou tatica. Ele destituiu William Marshal do seu cargo e lhe confiscou todas as propriedades enquanto foi regente, para depois readmitir os direitos e possses dele na fase final de sua vida como rei, que foi um grande fiasco. Depois da morte do irmão ele assumiu o trono, e ao inves de ser chamado John Lackland ( sem terra) começaram a chama-lo de John Softsword (espada molenga) devido ao seu desempenho militar deficiente.
A rainha Eleanor de Aquitania foi retratada em cores fieis, uma mulher inteligente que já havia sido rainha da França antes de se casar com Henry II, astuciosa, grande articuladora, que sobreviveu à anulação do primeiro casamento real, ao segundo marido real e a quase todos os 8 filhos.
O fato de haver barões leais à França era comum nesta época porque depois da conquista dos Normandos em 1066 os poderosos procuraram de toda forma misturar familias normandas ( francesas) às familias tradicionais anglo saxãs, para ligar definitivamente a lealdade e as propriedades deles aos reinos da Inglaterra e França através de sangue e interesses financeiros das heranças.
Falando dos soldados, um exercito nesta epoca era composto de:
-nobres convocados pelo rei, geralmente pelos filhos não herdeiros de nobres com terras hereditarias (porque eles não tinham patrimonio nem herança, pela Lei inglesa apenas o primeiro filho herdava titulo e todas as terras, e os outros filhos passavam a vida se pegando pelos pescoços),
-soldados que eram pessoas comuns que recebiam um treinamento temporario e serviam aos nobres de quem eram vassalos numa determinada campanha como parte de seus deveres feudais,
-alguns soldados "profissionais" que mantinham treinamento constante mesmo em tempos de paz, em que se incluiam os arqueiros. Os arqueiros eram o que hoje chamamos de atirador de elite, um long bow ( arco) tradicinal do pais de Gales, Irlanda e Inglaterra podia atingir um alvo com precisão a cerca de 300 m de distancia e disparar até 12 flechas por minuto, o que é muito num campo de batalha onde se luta em combate proximo e lento. Desde cedo nas vilas eram selecionados os jovens com maior habilidade com o arco, e eles tinham a obrigação de treinar pelo menos 2 horas por dia constantemente e promover torneios regionais para fazer um ranking. O esforço para tracionar o longbow era tão grande, que hoje os arqueologos identificam ossos de arqueiros pela curva que se formava na coluna deles.
Um exercito naquela época era muito diferente do exercito que conhecemos hoje, que tem toda uma cadeia de suprimentos. Os soldados eram obrigados a procurar o que comer e vestir por si proprios, e tambem tinham a obrigação de providenciar suas proprias armas, então um exercito acampado perto de voce significava uma horda de ladrões invadindo e roubando sua propriedade, eles não destruiam apenas o alvo de destino, mas tudo que ficava no caminho tambem. Raramente viam pagamento alem do saque do locais por onde passavam, que o rei dividia "leoninamente" ficando com 99%.
O filme retratou muito bem esta situação, eles caçavam para seu proprio sustento, comercializavam comida entre si, e na hora de ir embora pegaram todo tipo de arma e equipamento que puderam.
Os cavaleiros tinham um certo padrão de armas e uniformes obrigatorio: cavalos, cota de malha, elmo, espada, escudo, maça, lança, pelo menos 4 escudeiros que o atendiam pessoalmente e mais uma cota de soldados a pé que deviam recrutar em suas terras para servir ao rei sempre que fossem convocados.
No tempo do Rei João Sem Terra (sem terra porque era um segundo filho), não existiam ainda armaduras articuladas. Os cavaleiros desta época usavam a cota de malha, feita com aneis de ferro em enredo triplo na forma de uma tunica, com capuz separado, e por baixo dela uma tunica de lona acolchoada em varias camadas, para aparar o impacto de golpes das armas, e os mais ricos tinham perneiras de cota de malha tambem. A coisa toda pesava no fim uns 15 a 20 kg, e era vestida e amarrada no corpo de modo tão complicado que precisava 3 pessoas para desvestir, então a partir do momento em que estivessem em territorio hostil, os cavaleiros permaneciam vestidos dentro daquilo direto, sem trocar a roupa de baixo nem tomar banho porque ferro e água não costumam se dar bem. (IAK). Imagino que precisavam da ajuda de 1 ou 2 homens para ir ao banheiro tambem. Outro ponto para a fidedignidade da pesquisa de vestuario do filme, o strip tease complicado do hauberk de Russel Crowe (e aí somos gratos aos roteiristas porque se era necessario incluir um strip, com certeza o dela seria traumatizante, e ele definitivamente Tá Podendo).
Como todo mundo usando cotas de malha pareceria semelhante num campo de batalha confuso, eles vestiam um avental identificador por cima, os participantes da cruzada usavam um avental com uma grande cruz vermelha no peito,e os cavaleiros que fossem chefes de brigada ou defendessem uma bandeira propria lutariam com um serviçãl carregando um estandarte perto deles (foi daí que surgiu a heraldica, da necessidade de uma especie de logotipo de familia que fosse facilmente identificavel pelos ignorantes).
Por cima do capuz usavam um elmo de ferro, que na maior parte das vezes era aberto apenas com uma proteção nasal, apenas homens muito muito ricos teriam um elmo articulado fechado como o que Sir William Marshal, o rei João e a desajeitada Marion usaram na batalha da praia (alias, Marion participar desta batalha totalmente paramentada está absolutamente fora de cogitação no contexto da época, foi um recurso de roteiro para quebrar a monotonia do filme, desnecessário). A cena em que ela cai no chão e fica na água quase se afogando porque não conseguia levantar devido ao peso do hauberk é uma cena muito fiel, caindo do cavalo um cavaleiro era presa meio morta porque era muito dificil se mover no chão e se levantar.
Pequenos detalhes no vestuario dos cavaleiros do filme são impressionantes: no hauberk que Marion veste é possivel até ver as tiras de couro que prendiam as mangas acima do cotovelo, para diminuir o peso da manga que caía sobre as mãos atrapalhando o manejo da espada . Se ela teria tido treinamento e condições fisicas de manejar uma long sword em condições reais de batalha é uma outra conversa... culpem os roteiristas, de novo, eles precisam manter a peteca no ar.
Apenas cavaleiros (de origem nobre) lutavam com espadas, em parte devido ao custo delas (neste periodo, logo depois da Primeira Cruzada em que os ocidentais tiveram contato com o aço de Damasco uma boa espada poderia custar o equivalente hoje a uma casa), e em parte devido ao fato de que o aprendizado e pratica do manejo da espada era uma atividade esportiva reservada exclusivamente aos filhos dos nobres. Uma espada era um bem tão valioso que era herdada ( e ai o roteiro acerta novamente ao fazer da espada um pagamento regio por um serviço prestado), e a maioria tinha inscrições no cabo ou na lamina.
Um soldado pobre que não fosse arqueiro provavelmente manejaria uma lança, um escudo, talvez um machado leve e uma funda que lançava pedras.
Qualquer combate onde houvesse morte do oponente implicava no confisco lícito e comum de suas armas, cavalos e escudeiros, porque as armas em si eram um bem muito valioso. Aliás, saquear os vencidos de suas roupas e bens tambem era licito e normal, muitas pessoas eram mortas por bandoleiros nas estradas apenas por causa de suas roupas.
A vida nas vilas
No filme algumas perolas da pesquisa historica passam quase desapercebidas, como o fato de que nas casas comuns e mesmo nas ruas e igrejas se jogava uma camada de palha sobre o chão para absorver a lama dos pés das pessoas. Os ratinhos passeando na comida da mesa de Sir Walter Loxley tambem eram bem historicos, ninguem sabia que ratos transmitiam doenças e eles eram permitidos dentro das casas porque ajudavam na "limpeza" dos restos de comida jogados rotineiramente no chão. As pessoas comiam com as mãos, usavam uma faca grande apenas para partir um pedaço que viria para o seu prato, e uma faca pequena para espetar pedaços no prato, não se conheciam os garfos. O guardanapo que Marion usa é um requinte talvez duvidoso para a época, considerando que eles estão em uma pequena vila do interior e ela não teve educação numa familia nobre, eles provavelmente teriam limpado as mãos no avental ou nas roupas.
Numa vila muito pobre com comida escassa, os órfãos eram deixados à propria sorte, como conta o proprio Robin sobre sua infancia e como se vê nos garotos selvagens da Floresta de Sherwood. No reinado de João as vilas ficavam cada vez mais pobres, porque embora plantassem, uma grande parte do que colhiam era paga como tributo ao rei, outro naco ia para sustentar a Igreja, que era mais rica que o proprio trono e tinha poder de decisão e de executar a Lei, inclusive com um exercito proprio como se vê no uniforme dos cavaleiros que vieram escoltar o embarque do milho de Nottingham.
O fato de Robin se intitular a "man of the Hood" ao roubar os grãos liga o nome que ficou posteriormente conhecido ao fato de que estes bandoleiros sempre usavam hoods (capuzes) para esconder os rostos. Outro nome antigo do bando, os merrimen ( homens felizes) tambem foi mencionado quando ele diz que agora estariam mais felizes levando o milho.
Os trajes de época foram todos muito bem pesquisados, as toucas nas cabeças de uso cotidiano, o fato de que ninguem trocava muito de roupa mesmo após trabalhar o dia todo, e que um banho quente como o que providenciaram para Robin era um luxo de uma vez na vida se voce não fosse muito rico, porque umas 10 pessoas teriam que carregar uns 30 baldes de água quente da cozinha lá longe para encher a sua tina. Para minimizar a sujeira das roupas se usavam tunicas ou aventais por cima, que eram trocados com mais frequencia, e tamancos de madeira para andar na lama fora de casa.
Os cavalos do filme são para mim uma leitura confusa: os gigantes frisios pretos eram cavalos de batalha muito valorizados na época das Cruzadas, porque tinham estrutura para aguentar o peso de um cavaleiro paramentado e ainda assim eram ágeis e adestráveis, mas o grande Lipizzaner (o branco) que pertencia ao rei Ricardo e fica com Robin está fora de época e de contexto geográfico. Mas ele é MUITO fotogenico, convenhamos, mais que o proprio Russel Crowe.
O grandão Golias, que arava a terra de Marion é um
rouncy, uma raça mista muito forte de tração pesada. Os outros cavalos mais altos e castanhos dos cavaleiros do exercito estão dentro do contexto, algumas criações de cavalos desta raça indefinida mas de porte atletico eram famosas nos mosteiros do país de Gales e em outas partes da Europa, eram chamados
palfrey, e se percebe que os animais usados no filme tiveram adestramento de batalha, porque investem sem medo contra uma parede de escudos e lanças e continuam indo em frente debaixo de uma saraivada de flechas. Nota 10.
Os pequenos poneis islandeses que os meninos da floresta montam eram os cavalos mais comuns em toda a Europa nesta época, que seriam usados pelas pessoas rotineiramente e são descendentes dos cavalos que os saxões trouxeram das regiões nórdicas. O simples fato da produção ter trazido estes pequenos animais para a filmagem já é impressionante, porque foram quase extintos e teem sido objeto de um programa de recuperação genetica há cerca de 30 anos. Nota 10.
Informações sobre estes cavalos podem ser achadas
aqui.
Tenho algumas duvidas sobre o ritual funerario de Sir Walter Loxley, a cremação era comum na religião celtica, mas absolutamente proibida pela Igreja Catolica dominante na época e lugar em que o filme se passa, porque os catolicos acreditam em ressurreição do corpo, literalmente. O mais provavel, como lorde da vila, é que tivesse sido enterrado num pequeno campanario atrás da igreja.
Os eventos historicos como as batalhas e a invasão tiveram algum acomodamento ao roteiro em termos de datas. O grande cavalo branco desenhado numa colina na verdade fica em Uffington, mais para o lado do pais de Gales, e não na direção do Canal da Mancha onde ia acontecer a batalha, mas aquele cavalo branco é um marco celta importantissimo na historia de Britania, o antigo país ingles, e eles quiseram provavelmente ligar a figura de Robin montado num cavalo branco à figura do herói celta antigo que o monumento homenageia. O Rei João Sem Terra na verdade foi morto numa batalha justamente no meio de uma invasão francesa pelo canal ao Sul e uma invasão pelos barões descontentes vindos do Norte.
Outro detalhe de roteiro chama a tenção, o fato de dizerem que o pai de Robin foi um
mason ( pedreiro que trabalha esculpindo rochas, a arte da cantaria) e
Filosofo, o tema que relaciona estas duas coisas é a Maçonaria, poderiam estar sugerindo que a Maçonaria estivesse por trás da Carta Magna, mas não há evidencias historicas da existencia da maçonaria neste periodo, apenas lendas míticas.
Como Ridley Scott sempre faz, as sequencias de batalhas são impecaveis, desde o prologo da saraivada de flechas, as barcaças de desempbarque, até a escolha de arma que Robin faz ao descer para a praia, uma maça, mais adaptada a quem não costumava manejar espadas.
....continua